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“Travessia do Sul” – Diário de bordo, Dia 4

2 de junho de 2009 Deixe um comentário
Dia 4
17 De Maio 2009
Aljezur – Sagres

A última e mais aguardada tirada do meu passeio começou cedo. Depois de paga a despesa da estadia na tarde anterior, à saída dos portões do parque o relógio marcava as 08h05.

Os primeiros quilómetros foram pachorrentos, de ritmo calmo e compassado até à grande descida, que fiz tranquilamente agarrado aos travões, empurrado pelos quase 20kg de peso da minha menina.
Á semelhança do dia anterior rumei ao Castelo, trepando toda aquela empinada rua de empedrado, passando novamente pela igreja e seguindo adiante, parando ofegante a 20m do final, já completamente encharcado em suor, ardendo de calor.


Castelo de Aljezur ao longe…

Aqui já mais perto, mas comigo já apeado…

As vistas que tinha agora sobre Aldeia Nova…

Por uns estradões rápidos fui ganhando quilómetros e ritmo. O dia, à semelhança de todos os outros brindava-me a manha com um esplêndido céu azul, polvilhado de vez em quando com pequenos farrapos de algodão branco…
A mesma brisa, fiel, que me acompanhava há dias, continuava arrefecendo e mantendo dócil o quente dia.


Pelas 09h30 já cheirava a Algarve…

As paisagens matinais…

A determinada altura e depois de uma pequena elevação surgem magnificas as linhas de espuma brancas a recortar a acidentada costa contra uma paisagem de azul a perder no horizonte.


Na chegada à costa e ao mar…

Toda uma paisagem sublime…

À medida que me ia aproximando da costa o terreno ia ficando com desníveis cada vez mais acentuados.
Por várias vezes durante o dia me veria a descer à cota 0 para depois voltar a conquistar muitos metros verticais às paragens daquela zona… Um sobe e desce constante que já não seria fácil numa jornada de btt sem peso excessivo aliado a umas pastilhas do travão traseiro, essas sim, a roçar a exaustão…

No entanto todo um mundo novo se ia mostrando espectacular, abafando as dores nas pernas que já pontuavam cada pedalada fora da cadência. A minha mente viajava mais depressa que as minhas cansadas pernas, deitando-se a adivinhar as paisagens e os trilhos que se seguiriam, mas sempre perdendo no que toca a originalidade das cores e formas, no que toca aos caprichosos cheiros e sons, no que refere às sensações que pode proporcionar a alguém que assim o deseje, que assim o anseie.


Zonas completamente despovoadas…

Vales de beleza discreta…

Não foi rápida a chegada à Carrapateira, mas foi soberba a curta viagem. Tinha valido cada minuto das duas horas de pedal que já trazia quando pelas 10h05 entrei na vila, onde contava tomar o café da manha, coisa que pela hora matutina e percurso escolhido não me tinha sido possível ainda beber. Além de que vinha a contar com um café na entrada da vila que também se encontrava fechado.

A praia da Carrapateira providenciou das melhores vistas, daquelas que nos fazem perder o sentido do tempo e nos carregam embalados pela beleza e singularidade do momento.
Calmamente, aproveitando cada segundo de deleite, vou subindo o pequeno troço alcatroado que me eleva acima do ombro norte da praia. Uma enorme duna de areia cortada por uma estreita tira cinzenta, escaldante sob o sol que subia ligeiro no céu azul.
A paisagem era sublime.
O mar reflectia um azul intenso, escuro. Rebelde. Debatia-se na orla costeira com evidente fulgor, para evidente gosto dos surfistas que nas suas ondas desenhavam leques de água e se deixavam apanhar por elas para depois, muito rápidos, lhes escapar acelerando, para logo depois executarem novo leque de água à saída do tubo e assim sucessivamente até esta perder força ou o surfista perder o jogo e cair da sua prancha. Onde todos naturalmente se voltavam a agarrar para de novo tentarem a sua sorte, independente do sucesso ou fracasso anterior. Está à vista de todos que o que interessa mesmo no final não é ganhar ou perder, mas sim as vivências que vamos tirando desse caminho que se percorre. Os surfistas nas suas ondas como todos nós na vida… Só não vê quem não quer.


Á entrada da vila da Carrapateira…

Uma subidinha que pouco ou nada custou devido às compensadoras vistas…

Carrapateira…

Mais do mesmo. Um lindo dia, com uma bela paisagem…

Pelas nariz entrava-me um cheiro inebriante a mar, a sal. Àquela maresia tão própria das costas violentas, inóspitas, que fica no ar depois das ondas se debaterem contra as escarpadas falésias, investida após investida, selvagens.
Depois de uma curva no caminho a natureza volta a suplantar a minha poderosa imaginação, situação aliás habitual mas que me agrada enormemente.
Toda ela uma bênção para os olhos.
Desde a zona dos viveiros, ou costa dos percebes, ali à beirinha daquele enorme azul que se extinguia apenas onde a vista alcançava, estava uma linha de costa que teria que contornar. Este pedaço de percurso deixou-me bêbado com tanta luz, com tanto para ver, daquelas vistas iguais aos postais pirosos que vemos à venda para turistas, deixando-me num estado de espírito que muito dificilmente encontraria palavras que o conseguissem descrever de forma conveniente e fiel.


Uma curva no caminho…

Reservava estas vistas para sul…

Uma costa fabulosa…

Cheia de pequenas pérolas…

A praia do Amado, onde bebi o tão ansiado café numa roulotte que por lá estava estacionada, surgiu tranquilamente no final de uma curta descida. Até um geladinho comi aqui enquanto fazia um breve descanso… Voltei a carregar de água, mais 1,5l. Desde as 08h00 da manhã já tinha bebido mais de um litro de água. Sim porque a garrafa entrou inteira para dentro do CamelBak, não sobrando uma gota no recipiente original uma vez finalizado o processo.
Faltavam quinze minutos para as onze da manha quando me pus de novo ao caminho. Ainda não o sabia mas estaria prestes e enfrentar os mais duros quilómetros de toda a jornada e refiro-me à jornada completa.
Em parte alguma do percurso tinha tido que me aprumar tanto em cima da burra, mesmo quando a empurrava e puxava, ou me via quase a perder-lhe o controlo, como aconteceu algumas vezes antes. As dificuldades que se seguiram foram as mais sérias. Embora algumas me tenham feito sentar o rabo no chão a rir sozinho depois de ultrapassadas, outras houve que me deixaram pequenino, pequenino, durante os minutos seguintes. Outras, verdadeiro mel para os sentidos.
E tudo isto num só dia de existência. Não havia eu de ficar moído no final…

Só que disto eu nada sabia ainda.
Destas dificuldades eu tinha somente uma vaga ideia, remota, de relatos lidos na internet, de algumas fotografias que circulam nesse universo paralelo ao nosso.
Haveria de me confrontar com elas, uma de cada vez, há medida que se me iam mostrando. E é tão boa esta sensação da aventura, do mistério, da adrenalina a correr forte nas veias, dos músculos vibrantes, de sentir o espírito vivo e alma aberta ao mundo, verdadeiramente juntos num só…
Da liberdade completa e total.


Na praia do Amado, à espera do cafezinho…

Dois minutos depois de sair daqui estava num mundo distante. Num mundo de trilhos alucinantes e vertiginosos, suspensos nas falésias a largos metros da fina areia da praia. Trilhos pedestres pendurados em encostas demasiado inclinadas para permitirem sequer um erro, uma desatenção. Com inclinações tais que me cheguei a ver obrigado a ir a pé porque o crank esquerdo batia na pendente de terra empurrando-me para fora, para a direita e para o vazio. Não foi mais fácil ir a pé mas foi definitivamente mais seguro, já que assim se algo caísse seria só a minha menina, ao contrário do que aconteceria na primeira hipótese. No entanto antes da curva que desaparecia no topo da falésia já esmagava novamente os pedais…


Trilhos na praia do Amado…

Tomei o café ali em cima…

Depois de sair das areias. Visível o trilho que corta diagonalmente a encosta…

Do melhor…

Lindo, lindo, lindo! Mas estranhamente assustador…

Depois de ultrapassada a parte mais inclinada voltei a segurar a guiador entre as mãos, mas desta feita de rabo sentado no selim e apenas voltei a desmontar porque ainda mantenho aquele espírito de auto-preservação, natural a todos os seres vivos, e que felizmente me mantém capaz de ajuizar correctamente algumas situações, embora nem todas deva admitir.
O trilho corria sinuoso bem no topo da falésia. Exposto.
Noto num relance que a minha passagem naquele ermo caminho não tinha sido noticiada por ninguém das poucas pessoas que se passeavam na beira da areia molhada.
Durante aquele espaço de tempo, o mundo pareceu realmente parar. Já havia experimentado esta sensação antes, na montanha, em situações de compromisso semelhantes. Aliás foi como encarei o obstáculo, como uma passagem mais técnica de montanha, que teria que vencer sem outro desfecho possível.
De repente só ouvimos o nosso coração, o nosso suor enquanto nos molha a fronte e nos diz: “Tu consegues!”.
Tudo à volta se imobiliza num suspiro de silêncio enquanto nós tomamos as acções que temos que tomar, sem raciocinar em demasia, deixando pouca margem de manobra ao cérebro para nos baralhar os instintos, para nos confundir com dúvidas e incertezas.
De músculos tensos, com todos os sentidos alerta, e depois de encher de ar o peito duas vezes, como quem ganha coragem, enfrento então esse pequeno pedacito de caminho, mas que pelas condições que apresentava reunia tudo para me fazer satisfazer as minhas mais básicas necessidades.
 

Para mim a parte mais complicada devido ao estado do trilho, parcialmente destruído, e que me obrigou novamente a desmontar…

A uma altura pouco aconselhada a um deslize é melhor não facilitar…

Vistas de arrepiar…

E para compensar do esforço lá estavam sempre as preciosas paisagens…
A subir muitos metros seguidos desde a cota 0 novamente…

Entretanto, as cores e cheiros do mundo que me rodeavam eram, por si só, capazes de me fazer esquecer a dureza dos quilómetros que ia acumulando nas perninhas. Felizmente que o piso se mantinha capaz de boas médias, permitia rolar mais ou menos rápido, consoante o motor deste binómio assim o conseguia.

De qualquer forma, os trilhos não eram só caminhos fáceis. Esta foi a jornada que mais me obrigou a navegar atento ao GPS, obrigando-me muitas vezes a perscrutar o caminho a pé, antes de me fazer a ele, principalmente quando não lhe via o final, ou como em algumas partes houve, que por metros o trilho desaparecia para ir surgir mais à frente perdido no mato rasteiro de mil e uma cores.
Parava, desmontava, ia ver do caminho. Voltava atrás, pegava na bicicleta e lá me fazia ao caminho, como e por onde podia.
Assim foi acontecendo até determinada altura em que me surge pela frente uma descida que dificilmente esquecerei tão cedo.
Fiquei parado no topo alguns minutos, no “vai-não-vai”, tentando analisar se tinha capacidades de o fazer montado, em segurança.
Não tenho por hábito desmontar em descidas, mas esta assim o obrigou, e em boa hora tomei tal opção. O que se passou a seguir foi, sem margem para dúvidas, o momento mais cómico de toda a odisseia. A estar alguém a ver e por certo que, por esta hora, ainda se estaria a rir.
Eu também me ri, mas apenas no final. Depois de ter feito mais de metade da descida arrastado pela bike, segurando como podia no selim só com uma mão enquanto a outra barafustava em círculos no ar, desesperadamente tentando manter o equilíbrio do restante corpo, ao mesmo tempo que de pés a arrastar pelo pedregoso chão, fui fazendo ski, em completo pânico, com a situação completamente fora de controlo até que a frente da bike bate numa pedra, torce toda para a esquerda e me joga a direcção para as couves, permitindo desta forma imobilizar o comboio que descia louco ravina abaixo. Eu segui mais um metro ou dois, agora já sem o apoio daquela muleta de duas rodas, de ski, acabando por ficar sentado no chão, de rabo flamejante de dor. Foi de costas para a descida, com a bike tombada sobre o flanco, imóvel e já na base daquela demoníaca parede que me deixe estar sentado por um pedaço, enquanto fumava um cigarro e comia mais um mini-chocolate.

Depois disto pouco havia que me poderia impedir de chegar a Sagres. Cheguei a dizer em alto e bom som, que nem que partisse um crank, haveria de arrastar a bicicleta até às quentes e finas areias do meu destino final.
 

Uma descida de loucos…

A fotografia da parede ainda a massajar o rabo nas pedras…

O caminho que ia ficando para trás. Sagres cada vez mais perto…

O tempo ia passando fugidio, enquanto eu me divertia neste sobe e desce constante. De subidas longas e morosas a descidas curtas e técnicas mas sempre com vistas de encher as medidas a qualquer um. Sentia-me privilegiado por poder ter este pequeno tempo de qualidade só para mim, de poder usufruir dele inteiro. Sem meio-termo, um acto perfeito de egoísmo, que não me importa de admitir visto que preciso dele como pão para a boca, como ar!
Sou um ser sociável, mas esta solidão desejada, esta tranquilidade permite-me pensar, permite-me ouvir os desejos mais íntimos do meu coração no que refere à minha pessoa, e é tão imprescindível para mim que chega a doer fisicamente.
As minhas vontades, os meus desejos, as minhas reais necessidades e não aquelas que me são impostas por uma sociedade hostil, consumista e influenciadora, chegam-me de uma forma mais clara, transparente muitas vezes.
A natureza consegue ser o catalisador, o portal de acesso ao meu eu… É quem me permite a entrada nos mais recônditos e escondidos lugares da minha consciência, sempre me ensinando quem sou, como sou, do que sou feito e do que é preciso para levar de vencido este esqueleto.
Desde há muitos anos que a natureza tem sido a minha melhor professora e hoje estava a ser mais um dia na escola. Um dia de exames, para ser mais preciso.

A hora do almoço aproximava-se veloz e foi num pinhal, recheado de belas e convidativas sombras, que devorei o que me restava de comida. Um mini-chocolate para abrir o apetite, uma “powerbar” de “banana flavour” horrível e que mesmo com fome só consegui trincar metade, terminando em beleza com mais um chocolate e os restantes amendoins que vinha petiscando desde a roulotte na praia do Amado, onde os comprei.
Sentia já nas narinas o vago cheiro da conquista final e apesar de até ali as coisas terem corrido pelo melhor, temia ainda pelo material que já apresentava alguns sinais de desgaste.
O suporte traseiro continuava hirto e firme. Já tinha cedido tudo o que tinha para ceder e já há uns quilómetros que deixara de me preocupar de cada vez que o ouvia roçar na roda. Ficou um bom trabalho a minha artimanha caseira…
Preocupava-me agora mais o facto das minhas pastilhas traseiras há muito terem pedido reforma. Estavam nas lonas e certamente não aguentariam até final.
As pastilhas da frente estavam pelo mesmo caminho. Embora mais frescas estavam agora a ser muito mais solicitadas desde que me apercebera do gasto anormal que as de trás vinham a sofrer. O peso extra e o contínuo uso dos travões em todas as descidas vinha-se a mostrar caro, mas não haveria outra forma. A segurança sempre esteve no topo das prioridades.

“Devia ter-me lembrado deste pormenor antes e ter trazido um par extra.” – Lembro-me de pensar.

Mas agora já nada havia a fazer e a par com mais uns quantos barulhos dos cansados e secos pivots da escora, o conjunto seguia imparável, rumo ao destino final, passados trinta minutos depois de ali chegar.


Ouro puro. Trigo ondulante ao sabor da brisa…

Hora de almoço, a fritar da cabeça…

Depois de mais umas curvinhas aqui e ali, depois de mais uns bosques de pinhal ajudando ao caminho com as suas sombras e por uns velozes caminhos de terra vermelha chegamos rapidamente á zona que para mim se mostrou como o ex-líbris de toda a aventura. Os trilhos que levam até à praia do Castelejo foram alucinantes. Assim que lhes deitei o olho foi algo que me deixou verdadeiramente extasiado. Qualquer coisa de brutal, com uma paisagem brutal, ficou sem margem para enganos como um dos meus melhores momentos em cima da minha btt.
Descer aquele “single” até lá abaixo foi um luxo e uma maluqueira que não resisti. Não me iria perdoar se viesse de tão longe para ali deixar a marca da sola dos meus sapatos ao invés da trilha dos meus pneus.
No entanto, os metros inicias da primeira descida tiveram que ser superados desse modo, já que a inclinação lateral do trilho não me deixava manter a traseira no sitio, estando constantemente a escorregar no xisto que se desfazia debaixo dos pneus, quando tocava nos travões…

A vista, essa, era absolutamente fantástica, alucinante…
O cenário ideal.


Praia do Castelejo…

Um luxo de trilhos, preciosos…

Piso instável e imprevisível…

Uma delícia…

A subida que se seguiu foi a ultima da jornada. Em óptimo asfalto, serpenteando encosta acima, fazendo com que os músculos entrassem de novo numa cadência suave, ritmada e tranquila. O corpo parecia que só sabia andar de bicicleta, fazia-o sem esforço, sem acusar demasiado o cansaço de todos os quilómetros e desnível acumulados, reagia de bom agrado a mudanças de velocidade inclusive. O ananás há muito que tinha encontrado a sua posição em cima do rijo selim e só se queixava nas maiores porradas, andando anestesiado a maior parte das tiradas.
Não tinha acusado ainda uma única cãibra, longe disso. O meu joelho estava em perfeitas condições e todas as dores que tinha tido até ali resumiam-se mesmo ao dorido traseiro.

Cheirava a conquista no ar como cheira o perfume de quem se ama. Entrava-me pelas narinas, carregava-me os pulmões e queimava. O oxigénio que inspirava parecia não chegar para saciar a sede que tinha de ver Sagres, enquanto a subida que tinha pela frente parecia não ter fim.
A pequena placa não deixara margem para equívocos. 10%! Acusava a dita.
E assim fui, inicialmente pujante para terminar espremendo por completo a avozinha, mas subindo metro após metro até entrar de novo nos estradões de pinhal para depois, ao largar a linha de eólicas, avistar à esquerda perdida ainda ao longe a tão ansiada vila.

Sagres estava ali, ao virar da esquina.
Já lá estava, quase que lhe tocava. Tinha conseguido e estava finalmente a chegar ao destino, com quatro dias de pó, suor e muitas aventuras pelo caminho!


Sagres ao virar da esquina…

Praia do Beliche…

Mais estradões cheios de pedra, que ignoro totalmente com o rabo e “pivots” a gritar de dor, até que chego à praia do Beliche, local onde apanho a ciclovia do Algarve. Aqui ia já num estado de ânimo que não saberia bem identificar, mesmo que quisesse. Um misto de sensações e emoções me passavam já pelos meandros da memória ainda nem tinha terminado, lembranças de situações assaltavam-me, fazendo-me sentir algo nostálgico já, uma mescla de experiencias sensitivas que varreu todo o espectro da escala…

Estava a terminar uma das viagens que mais prazer me tinha dado realizar. Foi talvez uma das sensações para a qual estava menos preparado. Muito menos do que para a dureza do percurso.

Fui desperto destes pensamentos quando avistei a Fortaleza de Sagres. Sabia que a praia da Mareta ficava já ali ao lado e na realidade, em pouco menos de cinco minutos andava por cima das areias da dourada praia, banhada por águas tão límpidas que quase parecem artificiais, palco de outras tantas aventuras mais mediáticas, mas que agora assistia, silenciosa, à minha vitória pessoal.

Ao meu pedido de “Foto, please!” o casal inglês, já velhote, atendeu sem cerimónias e foi só depois desta pequena tarefa cumprida que me larguei a navegar por aquele mar afora, em pensamentos claro!


Fortaleza de Sagres, no final da jornada…

Fim da linha. Na base da falésia descansam as areias da Mareta…

Destino à vista, 300kms depois…

A fotografia da praxe…

Depois de uns largos minutos passados a descansar na praia acabo por regressar ao largo da Praça da República onde tinha combinado com a Rita pelas 16h00. Pouco passava das 14h00 quando aqui cheguei e depois do tempo gasto em “contemplação” à beira-mar fui procurar algum sítio para comer, pois estava com uma fome de gigante.
Dou-lhe uma apitadela. Estava a vinte minutos dali. Ligo também para casa dos meus pais a relatar o sucesso da jornada!

O hambúrguer ainda não tinha pousado na mesa já a Catita tinha chegado, acabando por me fazer companhia nesta minha humilde comemoração de vitória… Uma refeição decente com um brinde no final. Ouro sobre azul!

Ainda antes de levantarmos ferro rumo a casa, revejo Irún, que aparentemente seguiu o meu conselho de visitar Sagres, embora aqui pouco tenhamos falado. Já tinha falado nele à Rita, porque ela estava comigo quando o vimos na Costa, mas ele não se mostrou muito à vontade e foram rápidas as despedidas…

Como epílogo desta brincadeira posso apenas dizer que guardo o tesouro mais importante que posso.
As memórias das experiências e das sensações durante estes dias de privação mas de supremo prazer. Guardo também a vontade que tenho já de repetir a brincadeira, desta feita com amigos para desfrutar de uma outra forma da experiência…
Para partilhar algo que senti como sendo fantástico, digno de ser realizado, de ser aproveitado, uma vez que está aí, desejoso de se mostrar, disponível para contemplar os mais ousados dos viajantes com algo que jamais esquecerão.

Resumo da etapa
Hora saída: 08H00
Distancia: 64.1km
Tempo total: 06H38
Tempo movimento: 05H10
Velocidade media: 12.4km/h
Velocidade máxima: 37.5km/h
Acumulado de subidas: 1060m
Acumulado de descidas: 1191m

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“Travessia do Sul” – Diário de bordo, Dia 3

29 de maio de 2009 Deixe um comentário

 

Dia 3

16 De Maio 2009

Cabeço da Eira – Aljezur

 

Ainda antes de adormecer na noite anterior tinha procurado no GPS por algum POI que me permitisse uma noite diferente das que estava a fazer. Não era tanto pelo chão da dormida ser sempre duro, mas sim por um banhinho em condições que já apetecia, e de que maneira devo dizer. Até o meu próprio cheiro já me incomodava e não fossem os toalhetes de bebé já há muito que me tinha jogado a um qualquer charco do caminho…

Ansiando por algo que me permita as comodidades suficientes para um banho daqueles, dedico 2 minutos a vasculhar nos POI’s do GPS e não é que encontro o Camping do Serrão, apenas a 2.5km dali…

 

Ainda pensei em desmontar tudo, arrumar de novo, fazer-me ao caminho e tentar encontrar o tal parque de campismo. Mas outras questões rapidamente se levantaram: Estaria aberto? Ainda existiria e caso sim, estariam a aceitar entradas àquela hora? Teria restaurante?!

Ainda me lembro vagamente de pensar que já não valia o esforço de sair do conforto das plumas do saco-cama…

 

Acordei completamente revigorado pelas 09h30 da manhã, mas fui-me deixando rezingar na preguiça de uma manha de Maio, tranquila e quente. Apetitosa.

Enquanto ia fervendo água para o 1º pequeno-almoço, que seria mais um par de mini-chocolates e uma caneca de chá do tamanho dos Himalayas, ia pensando no que fazer da etapa do dia.

Tinha inclusive posto a hipótese de arrancar já hoje para Sagres, mas isso iria modificar os planos que tinha traçado para ter boleia para casa desde o final da jornada, onde a Catita me iria buscar no Domingo.

 

Ainda a rezingar dentro do saco-cama…

 

A ideia base ficou por isso como sendo chegar até ao final da etapa que deixara incompleta na tirada anterior, almoçar qualquer coisa e procurar alojamento. Antes ainda passaria no Rogil para o 2º pequeno-almoço que entretanto começara já a arranjar lugar no estômago e seguidamente iria à descoberta do tal Camping que a existir seria a noite de hoje, com todas as comodidades que desejava.

E parecendo de propósito, o sítio do parque estava situado a 300m do trilho que seguia e depois de marcado o desvio arranco, finalmente, para mais uma jornada quando a manha passava já das onze horas…

 

Inicio do 3º dia…

Primavera em estado bruto…

 

“Turismo pois então, que há muito tempo não passeio por Aljezur…”

Era nisto que pensava enquanto dava as primeiras pedaladas. O dia, à semelhança dos anteriores estava perfeito. O calor que já se fazia sentir era constantemente dissipado por uma brisa dócil, mansa e primaveril…

 

É-me difícil resistir aos encantos da natureza. Seja ela onde for. É-me quase impossível não deixar que essas paisagens e sensações me absorvam por completo, inteiro, e é assim perdido no mundo que chego, num tirinho, ao Rogil…

 

Olá Sr. Burro, como está?

E as meninas? Como têm passado?

Não me ligaram pevide! Pudera, era hora do pequeno-almoço…

 

Assim como contava, foi num dos cafés da vila que tomei o verdadeiro pequeno-almoço. Uma empada ainda quente, mais uma sandes de queijo, outro pastel de nata queimadinho com canela a gosto para rematar, café e cigarrito no final descansado na esplanada do lugar.

 

“Que puto luxo! Ainda saio daqui mais gordo” – Lembro-me de pensar enquanto a senhora continuava a encher o mostrador de bolos e outras delícias que me faziam brilhar os olhos, como criança numa loja de gomas.

 

Na “esplanade” do café no Rogil a ver passar o movimento…

 

Aqui vejo de relance passar um ciclista com a bicicleta completamente atafulhada de carga. Era atrás, era à frente, era em cima, era às costas, eu sei lá. No entanto a cena mostrou-se-me familiar, fiquei com a impressão que já tinha visto aquela figurinha antes, mas custava-me a crer…

 

Como já estava só na fase de contemplação do movimento da rua e do próprio café onde me encontrava, tomei a rápida decisão de ir ver se quem me parecia assim o era realmente. Volto a aprumar algumas coisas dentro dos alforges e continuo o meu caminho, sem me aperceber que de alguma maneira deixava aqui o meu pequeno tripé da máquina fotográfica e que me vinha a permitir fazer alguns retratos – só viria a dar pela sua falta já em Aljezur no final da tarde…

 

Não percebi isso, nem percebi o ciclista parado na berma da estrada a entrar para um café de garrafa de água na mão. Ou melhor percebi, mas outra vez de relance, embora desta vez tenha dado para um aceno solidário e para ficar com a certeza de que, sim senhor, era o moço que tinha visto na ciclovia da Costa da Caparica na terça-feira passada enquanto passeava por aquela zona e que me tinha chamado a atenção devido à enorme carga que transportava aliado ao facto de também eu estar a preparar a minha partida que me trazia aqui hoje…

 

Não parei. Segui pensando na aventura daquele puto – porque era mesmo um puto – mas rapidamente me perco desses pensamentos quando surge visível na curva da estrada a placa informativa do parque de campismo que procurava. Bem dita! Pelo ar novo desta o sítio parecia estar operacional e a ideia de banhos e jantar começava a formar-se já bem palpável e real debaixo do meu empoeirado cabelo.

 

Olha que coisa fixe…

 

O desvio que seria obrigado a fazer era apenas mais à frente, coisa que demorou uns dois minutos a surgir, assim como o camping, que se encontrava realmente aberto e com restaurante a funcionar em pleno, além de possuir lavabos “à séria”.

Na recepção soube também que o parque estava aberto até às 22h00 e que aceitavam entradas inclusive até essa hora, assim como o restaurante só fechava às 23h00.

Claro que fiquei logo a moer o facto de ontem não me ter lembrado de vasculhar os POI’s do GPS à procura de algo semelhante mais cedo, mas já nada podia fazer a não ser aproveitar porque, agora sim, já ali estava.

 

Ficou por isso resolvida a dormida e o jantar de uma virada só.

O arranque da jornada final contaria com estes poucos quilómetros a mais, mas que não faziam diferença alguma já que sendo sempre a descer, até serviam como aquecimento antes de iniciar a dura subida ao castelo de Aljezur, com a qual iria iniciar o ultimo dia de hostilidades.

 

Sinceramente pensei ainda em deixar montada a tenda, largar alforges e peso e ir, desta forma, rever Aljezur levezinho.

Mas resisti à tentação e depois de meia volta e retomar o track original, segui direito à povoação carregado como havia chegado até ali. A etapa já iria ser frouxa, não haveria de afrouxar mais ainda!

Era uma questão de orgulho pessoal que estava em jogo…

 

A chegada à povoação de Aljezur foi feita pela sua entrada norte, começando logo aí a subir. Esta é uma vila antiga, mas que se mantém cuidada e hospitaleira. De ruas empinadas e becos apertados, degraus acatitados em cotovelos apertados por entre muros pintados de cal, muito brancos, que queimam a vista ao mais incauto dos visitantes…

 

Considerei um pequeno luxo pedalar por entre o casario, longe das gastas passagens dos turistas de verão. Passar ao lado do olhar incrédulo da velhota que não acredita eu vou por ali de bicicleta e que me grita:

 

 “Oh menino! Olhe que por aí são as escadas…”

 “Ah obrigado, mas não faz mal. Eu cá me arranjo.” – Respondo antes de olhar as escadas e de me ver obrigado a concentrar todos os sentidos numa só acção. Não cair!

 

Todas as vilas portuguesas devem ter um Largo do Pelourinho…

Recantos de Aljezur…

A igreja de Aljezur estava no caminho para o castelo…

Mais um recanto de Aljezur… Ali mais à frente apanhei as tais escadas malucas…

Os museus por aqui estão todos muito bem tratados…

Mais recantos empinados de Aljezur. Aqui só passam os da terra…

Junto ao rio, na zona baixa da vila…

 

Já junto ao rio foi onde acabei por parar e com agradável surpresa vejo novamente, encostado debaixo de uma grande sombra, junto à ponte, o meu amigo viajante do Rogil.

Aqui parei quase de imediato, até porque a hora do almoço ia correndo solta no dia, e depois de dois dedos de conversa fiquei a saber que se chamava Irún, de origem Belga. Andava de visita ao nosso país, dormindo em Pousadas da Juventude, onde as havia.

Ficámos um bocado à conversa, daquelas da treta, mas que sabem como mel. Acabei por ainda lhe dar algumas informações acerca do que lhe faltava percorrer, algumas recomendações sobre trajectos ou sítios que poderia gostar de visitar… Estava a chegar a uma zona que não sabia bem por que hipótese optar. Pretendia seguir para Faro e depois subir direito a Beja e daí sempre para norte, com desvio e passagem pelo OPorto, como lhe chamava…

Foi com o Irún que fiquei também conhecedor da existência de uma Pousada da Juventude na Arrifana, coisa que desconhecia completamente…

Uma coisa que lhe parecia fazer confusão era a nossa condução nas estradas e a falta de condições para ciclistas. Não entrava em ruas de sentido proibido porque dizia não ver a placa de “excepto bicicletas” como na terra dele. Não sabia se era obrigado ou não a andar de capacete e se podia circular nas estradas normalmente porque em nenhuma viu sinalética referente a bikes…

Acabei por ter que lhe explicar que sempre estava em Portugal e que, envergonhadamente, ainda estamos a dar os primeiros passos em relação às bicicletas na vida diária dos portugueses…

 

Acabei por lhe dizer, antes de nos separarmos, que poderia também querer visitar Sagres e daí seguir pela costa até Faro e depois então manter o seu plano inicial…ao qual respondeu com um murmúrio que já não consegui traduzir.

Um adeus e lá foi ele à procura da dita pousada enquanto eu pedalei direito à Aldeia Nova, povoação irmã de Aljezur, sobranceira a esta pelo lado de nascente.

 

Acabou por ser o palco do meu almoço o largo da igreja, junto ao café Colmeia, com um grupo daqueles sexagenários hippies que se vão encontrando nos Algarves e que por aqui se vão perdendo no tempo. Malta porreira e entre inglês, alemão, alentejano e português lá nos fomos entendendo o suficiente para nos rirmos e todos passarmos um bom bocadinho já que eles faziam musica e ritmos com as coisas que tinham à mão, tipo aquela banda britânica muito famosa, e eram bastante comunicativos e divertidos.

 

Auto-retrato já com a máquina em cima de um banco do jardim em Aljezur…

Aldeia Nova onde acabei por almoçar…

 

Foi muito bom! O meu almoço foi à sombra de um grande chapéu, com uma companhia divertida e alegre, uma enorme sandes de carne assada, acompanhada de salada e mais uma Coca-Cola.

Naquela mesa, todos eles eram “da terra”. Os que lá haviam nascido e os que por lá haviam escolhido morar, coisa que aliás transparecia bem na pele já castanha, outrora branca, enrugada e queimada pelo sol deste nosso tão hospitaleiro cantinho da malta que acusava a nascença noutras paragens mais frias desta Europa.

 

Ao lado do café Colmeia…

Igreja de Aldeia Nova…

Labuta dos campos de forma tradicional ainda em vigor por estas bandas…

 

Ainda dou mais uma voltinha por Aljezur, que de plana só tem mesmo a zona do rio. Toda a povoação se desenvolve na encosta do monte originando sempre bastantes subidas, normalmente em empedrado mas em bastante bom estado.

 

Volto a encostar numa das esplanadas, com uma vista magnifica, desta vez para me demorar numa leitura que vinha mantendo à noite, que me estava a interessar e assim mais duas horas fugiram voando ao sabor dos sonhos e quando me propus regressar de novo ao parque de campismo eram perto das 17h00.

Calmamente percorri aqueles metros já conhecidos e que me levariam à última subida do dia, longa, que duraria 2.5km, mas que tinha que vencer obrigatoriamente.

Fui pedalando tranquilo enquanto pensava já na água a bater-me na cara no duche e no jantar, que seria de rei, e pelo qual estava disposto a pagar o que me pedissem e, acima de tudo em como seria a ultima noite antes das areias da praia da Mareta, o meu destino final. Pensava em como estava quase lá…

 

Mas a penosa subida haveria de me obrigar a algum puxa/empurra porque devido a uma condução menos atenta deixei a direcção fugir e… ao mesmo tempo que forço a pedalada para corrigir a desatenção, a frente levanta-se sem mais avisos e quase me senta no chão de tão distraído que vinha.

Arfando feito parvo e de coração aos pulos fico a olhar o que restava da subida…

 

O que faltava subir…

Com Aljezur a ficar lá em baixo…

As boas vindas…

O parque com espaço de sobra…

A minha menina livre do peso…

O suporte que era alvo de atenta inspecção todas as noites…

Mais uma noite, a ultima…

 

Enquanto montava e aprontava o estamine chegou às minhas vizinhanças um outro ciclista, também sozinho, ainda com mais carga que o Irún.

Quando ele começou a montar o seu espaço percebi porque. Desde tenda daquelas antigas, como aliás também tive, em triangulo e mais rudimentar ainda que o sistema de luz que trazia montado na bicla, daqueles de bobine antigos que encostavam no pneu e assim davam uma luz fraquíssima.

Montou inclusive estendal. Parecia ele que estava ali para ficar 15 dias… Estaria?!

 

De qualquer forma perdi-me um pouco a mirar aquela lição de vida, mas sem nunca me fazer notado. O senhor apresentava ter mais idade que o meu pai, cabelo totalmente branco, franzino, mas claramente habituado àquela rotina. Quantas aventuras não lhe pesariam já na agastada mochila? Quantos quilómetros de liberdade não trariam já aquelas pernas pedalados?

 

Tudo perguntas que ficaram sem resposta, entre outras, obviamente…

Fui desperto desta nostalgia por um ronco na barriga que se deve ter ouvido na recepção do parque. Até fiquei embaraçado, embora nas imediações não houvesse agora vivalma.

 

Peguei na carteira e no telemóvel e fui direito ao restaurante, comer por hoje e por amanha que bem iria precisar.

 

Foi o melhor que podia ter feito. Num espaço com um aquário gigante, como nunca tinha visto, repleto de peixes tropicais de todas as cores e feitios, bem tratado com visível dedicação comi como um guerreiro depois da batalha. Um enorme bife da vazia grelhadinho com molho de natas e lima acompanhado de muita salada e um geladinho para sobremesa. A bebida, claro, uma cola fresquinha e mais meio litro de água que acabei junto com um café.

Divinal! Sentia o organismo a absorver lentamente todo o combustível que lhe ia dando, até ficar saciado por completo.

 

Mesmo sabendo que o dia de hoje não tinha sido de forma alguma cansativo, de energias renovadas sentia-me melhor ainda, com o entusiasmo e força nas pernas suficientes para encarar o dia de amanha, durante a curta caminhada de volta à tenda, como quase garantido. Não sou de deitar foguetes antes da festa, mas tinha as expectativas bem altas…

 

Depois dos telefonemas da praxe para casa, de mais um pouco do “Apelo da Selva” que me agarrava à leitura como já o havia feito outrora muitos anos antes, acabo por me render ao sono e ao pesar das pálpebras pelo que me deixo adormecer tranquilo com o despertador afinado para as 06h30 da matina, para a ultima e mais ansiada jornada deste passeio.

Sempre iria conhecer “in loco” os trilhos da praia do Amado, Castelejo e outras pérolas que tais…

 

Jóias essas que se encontravam agora a poucas horas de distância…

 

 

Resumo da etapa:

Hora saída: 11H30

Distancia: 21.5km

Tempo total: 04H56

Tempo movimento: 01H55

Velocidade media: 11.2km/h

Velocidade máxima: 32.1km/h

Acumulado de subidas: 317m

Acumulado de descidas: 333m

 

Continua…

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“Travessia do Sul” – Diário de bordo, Dia 2

28 de maio de 2009 Deixe um comentário
 
Dia 2
15 de Maio 2009
Montado do Adaíl – Cabeço da Eira

Depois de uma noite bem dormida o despertar só podia ser tranquilo. Assim aconteceu e ainda o relógio não marcava as seis da matina já eu estava de olho pregado no tecto da acatitada tenda…
Minutos depois já a água borbulhava para novo pequeno-almoço, em tudo semelhante ao lanche do dia anterior. Cereais com chocolate, um luxo!

A posição que tinha escolhido, já o previa, permitia-me dar as boas vindas aos primeiros raios de sol que começaram a surgir pelas 06h20…No entanto a azáfama de arrumar de novo tudo nos alforges ao mesmo tempo que engolia o pequeno-almoço demorou quase uma hora e foi assim que pelas 07h30 me fiz de novo ao caminho, de ânimo alto e mais confiante neste binómio homem/máquina, inclusive. O arranque foi, por isso, com o sol a surgir já vigoroso por detrás dos montes da serra do Cercal.
Por esta altura já me perguntava se não iria ter calor assim que começasse a pedalar, mas foi preparado para algum frio que comecei a rolar os primeiros metros do 2º dia desta minha jornada.


Inicio do 2º dia…

Um bom dia daqueles…

Trilhos rolantes e de bom piso a permitir novamente andar relativamente bem e fazer médias confortáveis que garantissem as horas que tinha estipulado para cada dia. Alguns quilómetros, poucos, depois de ter saído do montado de Adaíl comecei a ficar com calor. Isto pelas 08h00. Felizmente que sempre soprou um vento bastante agradável e “amigo” já que continuava a soprar nas minhas costas, chegando mesmo a aliviar-me nalgumas subidazinhas. Escusado será dizer que muito lhe agradeci durante quase todo o trajecto…


Trilhos rolantes e rápidos…

À medida que me ia aproximando de Troviscais os caminhos iam ficando um pouco mais duritos exigindo sempre bastante atenção devido à nervosa frente da minha menina… Algumas das vistas eram simplesmente fantásticas, onde nalguns casos, ainda saltitavam aqui e ali single-trails de fazer correr a imaginação, e nem era preciso ter assim tanta quanto isso.

Vales espectaculares com pequenas pérolas precisosas escondidas…

Sempre bastantes ribeiros para refrescar os pézinhos e a cara…

O caminho que ia ficando para trás…

As preciosas vistas…

Já em Castelão tomei o café da manha que ansiava há já duas horitas. Aceitei, a convite da minha menina claro está, um pequeno descanso num recanto bem agradável ao lado do manhoso café. Mais umas fotos aqui e ali, um cigarrito e vai de me pôr de novo ao caminho, desta vez durante alguns quilómetros de excelente asfalto que desfrutei que nem um doido, já que foi sempre a descer durante alguns largos minutos, de vento na cara para lavar a poeira e a alma…


A minha menina em Castelão…

Auto-retrato…

Depois de uma curva na estrada avisto algo que identifico de imediato. Em sentido contrário ao meu circulava uma ciclista também sozinha e de alforges na bike. Um olá de sorriso aberto e ambos seguimos viagem rumo aos nossos destinos. Qual seria o dela? Pelo bronze que trazia já pedalava fazia uns dias. Até onde iria? Foram perguntas, como outras, que me passavam na gazua nalgum recanto do cérebro enquanto rolava os metros que nos iam separando, pedalada a pedalada…
Entro novamente em caminhos de terra para enfrentar nova subida! Aqui e antes de olhar atentamente o GPS apanhei um susto devido à parede que se começava a mostrar à minha frente, estupidamente grande e empinada. Felizmente que uma leitura atenta ao mapa e lá me apercebo que o traço rosa não cruza perpendicularmente as curvas de nível e percebo o trilho que sai à cota e que se mantinha escondido por entre a folhagem.
Respirando de alívio acabo contornando o monte por um trilho de inclinação ridícula deixando-me quase como envergonhado com a minha frouxidão de há uns momentos antes…


Novamente o que ia ficando nas minhas costas…

E o que tinha pela frente! Ou achava que tinha…

Aiiiiiiiiiiiiiii! Que estou F%&$""#!
Já cheirava a Odemira.
Mais uns metros rápidos em asfalto, desvio à esquerda a 100 à hora – pelo menos parecia – e minutos depois entro na bela e sempre bem cuidada povoação de Odemira, onde cheguei pelas 11H15. Os recantos desta pitoresca cidade alentejana já me são bem conhecidos de outros tempos. Dos tempos de criança e das férias de verão com três meses de largo. Das passeatas com os avós à Quinta dos Fetos, dos mergulhos no Mira e do lodo até meio das canelas, das sardinhadas nas esplanadas das imaculadas praças, dos velhotes idos e das histórias do mar e de África à sombra de um toldo já gasto pelo sol tórrido de verão na Zambujeira e Odeceixe.


As flores dos canteiros de Odemira…

Junto às margens do Mira…

Na saída Oeste, pela Ponte Velha, de Odemira…

Os trilhos à saída de Odemira, sempre ladeando o rio Mira foram de uma beleza espectacular.
Começando com um single-trail bastante fechado e que acabava num pequeno troço de levada de água, também de um palmo e no qual se circula por uns metros até sair para uns estradões de excelente piso que cruzavam algumas pequenas ribeiras anunciando já a passagem do Mira a vau mais adiante…


Uma levada de água e um palmo de caminho…

Sempre ladeando o rio…

Bons trilhos e boas paisagens. Do melhor…

Ainda antes desta passagem que ansiava, a hora do almoço surgiu voraz e rapidamente me vi forçado a encostar na única sombra que avistava no caminho. Um grande, magnifico e antigo sobreiro.


Paragem obrigatória. A fome e sombra assim o manda…

O local da paragem ficou com o simples nome de “Restaurante Sobreiro II”. De ambiente acolhedor e tranquilo, paisagens idílicas e boa cozinha, não posso deixar de recomendar para futuras visitas…
Não posso deixar de referir também que a sombra apetecia porque o dia estava limpo como cristal e o sol do meio-dia queimava já forte no céu…


Restaurante "Sobreiro II"

Através de paisagens deslumbrantes chego à passagem em que o caminho cruza o Mira deixando duas hipóteses para quem quer seguir caminho. A passagem a vau ou um pequeno desvio que contorna pela esquerda. Foi a direito e molhando os pezinhos que ultrapassei esta pequena, mas perfeita, dificuldade. A pedalar está claro que as emoções são para ser vividas, todas e em doses concentradas, faz favor.


Sempre adiante…

Mais paisagenss e trilhos muito suberbos…

Novamente, vistas do que ia ficando para trás…

 
Eis que me surgia…

Finalmente a tão aguardada passagem do Mira, aqui ainda adolescente…

Em Sabóia passei às 13h45 e em Viradouro, onde contava acabar a etapa do dia, às 13h50. Que raio de contas fiz eu inicialmente?! Levava já quase 70km nas perninhas, sem contar com os do dia anterior.
No entanto sentia-me óptimo e estava largamente a exceder as médias com que tinha, em casa, baseado os cálculos para as distancias e duração das etapas. Estava a andar mais rápido do que tinha previsto e encontrava-me melhor fisicamente do que esperava. Só boas notícias, portanto…

Contava abastecer de água e comer qualquer coisa num café que pensava existir em Viradouro, já que essa informação constava dos tracks que obtive, os quais iria seguir na 3ª e 4ª etapa da passeata.
No entanto de café nem sinal, e da pequena oficina também não rezava muito a história…


Em Viradouro…

Já terá sido uma oficina ou ainda funcionará?!

Estava no suposto final do 2º dia, às 14h00, com vontade e animo, quando dou por mim a pensar que o melhor seria fazer já alguns quilómetros da próxima etapa, diminuindo a dificuldade desta na sua extensão total e principalmente no seu acumulado. O que tinha programado para ser a 3ª jornada não seria a mais longa mas seria mais dura devido ao seu acumulado total de subidas que rondava os 1500m.
Por isso sigo sem pensar muito no caso de onde iria dormir ou parar, mas começo a rever mentalmente o que iria ter de contacto com o “mundo”, pois já não levava assim tanta água, a comida que levava precisava de ser reforçada com qualquer coisa extra e sabia que não iria encontrar nada mais por muitas horas de viagem. Decido então voltar atrás de novo a Sabóia, pequena povoação mas que tinha o que eu precisava para satisfazer as minhas mais básicas necessidades. Uma gorda sandes mista saltou embrulhada para o CamelBak ao mesmo tempo que outra igual de rechonchuda me saltou pela goela abaixo empurrada com mais uma Coca-Cola fresquinha. Um pastel de nata e o belo do cafezinho foram um pequeno extra para afagar o espírito.


Em Sabóia junto ao Mercado…

O Mercado de Sabóia…

Só grandes máquinas…

E a minha ansiosa por mais quilometros…

Auto-retrato em Sabóia antes de me fazer de novo ao caminho…

Os 3 litros de capacidade do meu CamelBak ficaram sem espaço para respirar, cheios até à última gota. A necessária troca de baterias do GPS e da máquina fotográfica, um cigarrinho, umas fotos da paragem e ala que se faz tarde que para a frente é que é caminho!

Percorro novamente aqueles 2.5km até Viradouro e os 8km que já tinha feito antes de me decidir a regressar a Sabóia…
Tudo para a frente era já ganhos em relação ao previsto e por isso foi com tranquilidade redobrada que me fiz ao caminho, sem qualquer tipo de pressas, sem qualquer tipo de programa, apenas com a ideia de que quando estivesse a ficar sem luz do dia seria forçado a encostar porque só levava luz traseira e um pequeno frontal daqueles de cabeça, que mal serve para cozinhar.


Vi muitas destas…

Ja nos trilhos da 10ª etapa da Transportugal…

Os trilhos da Transportugal sabia-o, não são para brincadeiras. É uma prova dura e feita para malta dura.
Assim como foram as subidas da tarde. Duras!
Não tanto pela inclinação, mas pelo piso que chegou mesmo a ser impraticável em algumas zonas. Eu fiz no puxa/empurra grande parte da subida que sai desde Vale Porco e sobe ao topo da serra de Monchique e só imaginava aquela malta a esmagar os pedais por ali acima, em como até devem levar lume… mas que também levavam muita porradinha. Não admira serem tão bem tratados no final das etapas.
Um luxo de trilhos, a bem da verdade!

A ideia era portanto ganhar apenas alguns quilómetros de avanço face ao programado e nada mais. Com o sol a pino, mas completamente reabastecido, sigo adiante para descobrir os trilhos a gosto de uma das lendas vivas do btt português.
E que luxo de percurso e que extremo bom gosto…
Ribeiras e mais ribeiras envoltas em cenários idílicos, contrastando com caminhos vermelhos rapidíssimos, sempre rodeados de paisagens sublimes.


Terra vermelha e cheiros de mil e uma cores…

Mais uma ribeira se aproximava…

Aqui a ribeira era o caminho. A água chegou aos alforges…

Ao menos ia-se mantendo limpinha! Para estar aprumadinha na chegada ao destino…

No final de uma descida, a que ligava a Vale Porco, reservava uma outra surpresa das antigas.
De novo, vários cães saltam duma das curvas do caminho junto a uma casa antiga mas habitada. Todos grandes e ávidos por se fazerem ouvir cada um mais alto que o outro. Todos soltos a ladrar-me a um palmo dos calcanhares…
Aquela técnica da bike entre nós e o cão?! Pffff, esqueçam… Já tinha bichos entre mim e a bike, de um lado, do outro. Só faltava em cima, já que em baixo pouco faltou também… O caos!
Com muito stress e medo à mistura lá fui andando sempre com vozinha mansa, sempre a dar-lhes toda a razão, sempre com beijinhos p’ro ar e tal, lá passei novamente sem males maiores com a dona da casa que cuidava da horta olhando toda a cena, visivelmente aborrecida por ter importunado a tranquilidade daquele belo recanto com a chiadeira dos meus já cansados travões, nem aí para o meu visivel estado de pânico.


Algures…

A descida que escondia mais um encontro imediato de 3º grau…

Ainda mal refeito do susto anterior eis que chego a Vale Porco.
Local pouco aprazível para paragens e com mais casas perto do caminho a seguir, os sentidos mantinham-se alerta para mais indesejáveis encontros canídeos. Há quem goste eu sei, mas estes bichos começam realmente a mexer-me com os nervos…

No entanto esses instintos foram sendo vencidos, lentamente.
Foram gradualmente substituídos por outros durante as mais de duas horas seguintes que passei a subir, muito desse tempo puxando e empurrando a bike montes acima, com os seus 20kg, passando alguns dos mais altos que a serra de Monchique tem para oferecer, fazendo da tarde uma autêntica romaria no que toca a médias, mas soberba no que refere às vistas que o horizonte permite.


Vale Porco. Aqui começariam as verdadeiras subidas da tarde…

Ao principio coisa simples…

Mas lentamente udo à volta começava a ficar mais abaixo…

E eu cada vez mais alto…

Sempre a subir…

O piso a tornar a já dura e longa subida numa verdadeira e penosa ascenção à lá pata…

Cada vez mais empinada…

Mas eu também não tinha pressas, lá haveria de chegar…

Pelas 17h50 ainda andava perdido no rompe-pernas do alto da serra. Às 18h00 era hora de ligar o telemóvel para dar noticias lá para casa e supostamente dizer que já estava instalado e a descansar, mas aqui ainda estava bem embrenhado no denso eucaliptal que cobre esta zona da encosta pelo que só às 18h45 é que falei com o meu pai e a Rita e lhes disse que ainda pedalava e que o iria fazer até que houvesse luz disponível. O meu pai ficou de me ligar de novo às 19h30, hora a que ainda em me divertia em cima dos pedais, mas num vale tal que de rede nem sinal.


No final da grande subida, era esta a paisagem…

E já depois de mais umas quantas subidas, o que ia ficando feito…

Já a descer a serra…

Magnificos vales…

Mais ribeiras e sitios de encantar… Esta é a do Reguengo…

Dez minutos depois e com os últimos raios de sol a desaparecer rapidamente no horizonte acabei por parar no primeiro sitio em que havia algum sinal de telemóvel e me permitia algum conforto para passar a noite.


A sair do concelho de Monchique…

Acabei a dormir no “Hotel Cabeço da Eira” no pinhal do mesmo nome a 13km do final de uma etapa que, supostamente, seria a de amanhã.

A montagem da tenda foi ainda mais rápida que no dia anterior. Às 19h40, hora a que parei o sol brilhava ainda no horizonte. Rapidamente foi cedendo lugar à noite que nos acolheu quente e sem vento.
A sandes mista que comprara em Sabóia nem teve tempo de respirar fora do tosco e mal tratado embrulho. Acho que saltou directo da mochila para dentro da barriga sem passar pelo lugar de partida. As barritas estavam contadas, tinha comido a dose de dois dias. Jantar já não tinha, contava jantar qualquer coisa em Sabóia, muitos quilómetros lá atrás. Devido ao peso tudo vinha racionado.
A única coisa que restava de sobra eram mini-chocolates, dos quais engoli um par e saboreei pausadamente outro, sempre acompanhado de chá, muito chá.
A par com a sandes foi este o meu jantar.
Não fosse ter comido bem durante todo dia, certamente que cairia na esteira a roçar a exaustão. Ao invés disso, continuava a sentir-me bem na forma e condição, aliado ao facto de estar a meia dúzia de quilómetros de Aljezur assegurava-me pelo menos uma refeição quente amanha à noite, com a qual vinha aliás a contar. Como no início ainda iria passar no Rogil estava resolvido o pequeno-almoço que me asseguraria que seria “potente”.


Final de tarde no Pinhal do Cabeço da Eira…

Sempre acabei fazendo nada mais que 114km, numa jornada de 12h de passeio, com um acumulado considerável de subidas.
Praticamente conclui a que seria a etapa mais dura da travessia, pelo que me deixo cair no saco-cama, cansado mas de modo nenhum exausto, feliz e de grande sorriso na cara.
Levava o meu projecto a meio e com tudo a correr sobre rodas. Não tinha tido ainda um furo ou uma avaria, os suportes estavam a aguentar a tareia e a cumprir na perfeição, coisa que era o meu grande receio, e eu, o meu segundo maior receio, estava também a fazer, e a cumprir, a minha parte.

Ainda assim, todo o entusiasmo desta vitória pessoal não foram mais fortes que a fadiga e o desgaste da etapa e rapidamente me deixei embalar pelos sons do mundo até ao outro dia de manhã, acordasse à hora que acordasse!

Só tinha mesmo 13km para fazer…

 
 
Resumo da Etapa
Hora saída: 07H35
Distancia: 114km
Tempo total: 12H14
Tempo movimento: 08H54
Velocidade média: 12.8km/h
Velocidade máxima: 51.1km/h
Acumulado de subidas: 2040m
Acumulado de descidas: 2008m

 

Continua…

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“Travessia do Sul” – Diário de bordo, Dia 1

27 de maio de 2009 Deixe um comentário

 

" Travessia do Sul "

Uma aventura em solitário por trilhos e caminhos do sul de Portugal.

 

Dia 1

14 de Maio 2009

Setúbal – Montado do Adaíl

 

As ruas eram ainda iluminadas pelos candeeiros eléctricos quando chegámos à estação dos Ferry em Setúbal, eu e a Rita, pouco passava das 05h30 da manhã.

 

Estava a minutos da partida para a minha aventura por trilhos do sul deste meu Portugal, rumo a terras conhecidas e desconhecidas, lugares comuns, outros nem tanto. Do alto dos meus 32 aniversários, estava de partida para a concretização de um sonho antigo, da juventude e dos tempos das eternas revoluções interiores. Antes tarde que nunca, acho!

 

“Boa viagem…” Disse-me a Catita baixinho como para não acordar a rua…

“Boa sorte e tem cuidado” Acrescentou ainda junto com mais um beijo ainda meio ensonado…

 

Com tudo afinado, arrumado e apoiado em cima de um suporte de resistência duvidosa lá deixei a Rita sozinha no conforto do carro enquanto me via afastar em direcção às bilheteiras do ferry que me levaria até Tróia, onde começaria a minha rumaria ao sul, em total autonomia.

 

Com tudo programado com algum tempo de antecedência, sabia exactamente com o que podia contar em cada uma das quatro etapas que tinha estipulado, sabia de cor as altimetrias e a que quilometragens aconteceriam as subidas duras, quando deveria descansar, onde poderia reabastecer de comidas e muitíssimo importante, de água. Sabia onde iria dormir, sabia quase tudo o que podia sobre a aventura à qual já não podia agora fugir.

 

Sabia tudo sim, mas na teoria.

Os quase 300km que se seguiram haveriam de me provar o contrário.

 

Acompanhando o nascer da aurora, no barco o frio era mais que muito. Tremiam-me os dentes, as mãos, as pernas, o corpo todo. No meio de um porão vazio, apenas 2 carros e meia dúzia de almas faziam companhia à tripulação, esses bem resguardados do vento numa das cabines de passageiros. Trabalhadores de Tróia e malta das padarias de Setúbal que abastecem a península e que o fazem no primeiro barco que se lança ao rio.

 

Nascer do novo dia em pleno Sado…

 

Junto com eles ia eu, num porão vazio de peito aberto à incerteza e ao sabor do mistério e da incógnita. Com uma ânsia tal que acredito fosse a força maior para tanto tremer ao invés do frio que cortava. A incerteza da jornada, os possíveis problemas no caminho, a total ausência de ajuda em muitas alturas, tudo isto e muito mais já não me turvavam os pensamentos, injectavam-me agora dose tal de adrenalina que seria impossível de controlar de outra maneira a não ser ceder à vontade louca de iniciar tal sacrifício pessoal.

 

A serra da Arrábida despedia-se…

 

Os primeiros quilómetros em asfalto zuniam já debaixo dos pneus enquanto o sol ia rompendo com a suavidade de Maio. Garças e cegonhas acordavam devagar em voos preguiçosos, à minha passagem. Pássaros grandes e pequenos, inundando o ar de um chilrear intenso, primaveril e alegre, foram a minha companhia enquanto relembrava as memórias recentes de uma outra jornada, de roda fina, resultante num fracasso pessoal como nunca havia experimentado antes… Num breve segundo percebo, a claro, a diferença entre situações. Além das evidentes diferenças entre condições climatéricas, esta aventura era apenas minha. Parte de um sonho antigo, e cumpridas que estavam agora as primeiras pedaladas, nada a não ser eu próprio, mesmo uma avaria grave, me impediriam de conseguir em solitário, vencer este desafio.

Na zona da Vala Real tive a primeira experiência de como a bike se portaria nos trilhos. Felizmente que a sensação foi a melhor ao perceber que todo o conjunto, apesar de algo tosco de comportamento e pesadão, se mantinha estável, funcional e aparentemente capaz de aguentar a dureza dos caminhos que se adivinhavam…

 

O conjunto…

Labuta matinal e diária de quem vive da terra…

 

O dia ainda jovem brindava-me com um céu azul limpo, de belíssima visibilidade. Os cheiros, os sons e o colorido das paisagens lembravam constantemente o que a Primavera tem de melhor e neste estado de salutar embriaguez fui seguindo viagem até que em Melides fiz a primeira paragem para café ao qual juntei um divinal pastel de nata. Depois de um breve descanso era hora de voltar de novo ao caminho. Os trilhos iam-se sucedendo rápidos, salteados com uma ou outra subidita, para apimentar o colorido dos campos, mas nada de muito puxado…

 

Em Melides…

Maquinão…

Caminhos nas imediações de Melides…

 

E assim eu ia ganhando ritmo e entusiasmo e não fosse os barrancos irem-se sucedendo até poderia correr o risco da passeata se tornar monótona. Mas estes, cada um mais fundo e vincado que o outro obrigavam a extrema atenção a descer e um esforço hercúleo para subir. Tareia essa que se revelou muitas vezes impossível de cumprir pedalando. Subir montado esmagando os pedais na totalidade do percurso cedo percebi que não seria viável, quer pelo esforço empregue para vencer algumas das subidas quer pelo peso excessivo da traseira que tornava a frente numa peso pluma de crina eriçada e espírito irrequieto, impossível de manter em contacto com o chão durante as subidas mais empinadas.

 

A chegar à zona dos barrancos…
Barranco do Livramento…
Auto-retrato no barranco de Livramento…
Subida serpenteando por entre frondosos bosques de montados…
 

A tentar vencer um destes barrancos descobri uma técnica para empurrar a bicicleta que, decerto, me salvou da completa exaustão. Essa simples técnica consistia em segurar o volante apenas com uma mão enquanto a outra segurava firmemente na parte traseira do selim, permitindo deste modo puxar com o braço esticado todo o peso, enquanto tranquilamente dava a direcção pretendida à menina. Empurrar 20kg com ambas as mãos no guiador era algo de incrivelmente extenuante e ao fim de alguns metros de subidas arfava já fortemente, com o peito colado no avanço, patinando a cada passo. O calvário demorou o suficiente até aprender que a técnica do puxa/empurra funcionava na perfeição safando-me desde aí até final, inclusive permitindo-me encarar algumas paredes com um sorriso no rosto do tipo: “Quanto mais me bates, mais gosto de ti.”

Depois desta sucessão de barrancos, acabei por fazer um curto intervalo para engolir, num ápice, o primeiro almoço pouco passava do meio-dia, num lugar chamado Bairro da Carapinha, ali costas com costas com Santiago do Cacém.

Os trilhos continuavam a surgir na minha frente rápidos e espectaculares. Ultrapassei enormes bosques de montado de sobreiros, predominantes nesta primeira etapa. Os tradicionais Montes alentejanos foram começando a surgir aqui e ali, muitos deles abandonados, lembrando um país que se perde, lembrando um êxodo antigo, para as cidades grandes da costa ou para fugir à adversidade de uma vida à custa da terra.

 

Primavera…
Muitas ribeiras ao longo do percurso…
Um Portugal distante no tempo…
Mas sempre com espectaculares paisagens…
 

Por esta altura já tinha a minha dose de sustos e de encontros imediatos com alguns canídeos, muitos de bom porte, que teimavam em aparecer onde menos esperava. Por mais que uma vez me vi rodeado de cães de todas as formas, cores e feitios, quase sempre de aspecto pouco amistoso e ávidos por fazerem o gosto ao dente em carne fresca. Ou pelo menos era assim que eu lhes entendia os rosnares que me deitavam.

Cheguei a cruzar-me com um Rottweiler que, estando solto, me fez quase literalmente borrar os calções quando para mim avançou, rosnando ameaçadoramente, levantando um dos beiços, com o ar menos dócil que se possa imaginar. Quis largar tudo e desatar a correr para fugir daquele bicho enorme, mas para onde?! Estava no meio do nada, apenas sobreiros para a frente, sobreiros para trás… Segurando a bike já desmontado encontrava-me numa situação verdadeiramente “merdosa”, mas teria que sair dela e inteiro de preferência. Se conseguisse seguir pelo caminho que o GPS indicava óptimo, se não, logo teria que arranjar alternativa… Com calma, recuperei o controlo sobre os nervos e calmamente fui ganhando, passo a passo e com muitos beijinhos atirados ao ar e palavras de amor dirigidas ao meu novo “amigo”, os metros necessários para o ver pelas costas e este me deixasse seguir o meu caminho sem maiores percalços. No entanto tal façanha obrigou-me a passar o perto suficiente para quase lhe sentir o bafo. Separados por uma bicicleta estava eu e um enorme cão solto, de péssimo feitio e nem vivalma para testemunhar tal sina. Havia de ter sido bonito havia, se a coisa tivesse corrido para o torto, como diz o meu pai…

Pelas 13h30 chego à Barragem de Morgavel, lugar que me fez vibrar de emoção. Não foi certamente pela beleza do lugar, inquestionável certamente, mas antes pela sensação que chegava agora plena de que o meu projecto já não era mais um sonho distante mas sim real, de cores alegres e convidativas… De suor e de sal.

 

A chegar À Barragem de Morgavel…

Era-me quase impossível deixar de fotografar deste e daquele ângulo. Ora pára aqui e logo acolá mais à frente para novo retrato à extravagante paisagem. Aproveitei também para deitar o olho aos trilhos que tinha escolhido para passear com a Catita no próximo final de semana e que correm ali paralelos ao caminho de asfalto, um pouco abaixo deste e que a certo ponto permitem estes também belas vistas sobre esta pequena barragem.

 

Só mais uma…

E mais outra ainda…

 

De novo ao caminho, como projéctil embalado pelo vento continuo a devorar quilómetros de caminhos, por vezes com bastante areia, dificultando fortemente a progressão, obrigando-me a forçadas peregrinações, sempre no puxa/empurra da menina…

 

O estradão aponta o Sul…
Alguma areia a dificultar a passagem…
Mais um auto-retrato…
 

Sonega chegou como um oásis pois por esta altura e já com 90km percorridos eram hora de recarregar de novo as baterias atestando o estômago com mais uma gorda sandes de queijo e paio que trouxera de casa e uma Coca-Cola fresquinha, rematada com o belo do cafezinho queimado com borra no final, mas que soube quem nem ginjas, vá-se lá saber porquê.

 

Trilhos pertinho de Sonega…

Auto-retrato no centro da vila de Sonega…

 

Do lugar apenas conheci o largo do Centro Comunitário, o largo principal portanto! E além de reparar que os peixes do pequeno lago já há muito se tinham afogado no fundo do charco, pouco mais houve que me tomasse qualquer sentido e sendo que estava apenas a 13km do final da jornada, foi pronto que me fiz ao caminho, que dai até ao Barranco de Adaíl foi rápido, intervalando com mais susto aqui, susto acolá, devido aos muitos cães que continuadamente fui encontrando pelo caminho.

 

Mais Primavera…
O meu amigo e companheiro Vento, sempre a soprar nas minhas costas…
 

À sombra de um grande sobreiro fui encontrar o lugar ideal para a pernoita. Como da tenda apenas tinha trazido o tecto exterior por uma questão de peso, a montagem foi rápida e simples e uma vez organizado todo o interior, com respectiva arrumação do material e da bike, ficou horas de lanchar que fiz prontamente com o belo do lanche à laia de montanheiro e que me confortou a barriga por uma horita ou duas.

 

Local de pernoita… "Hotel Montado do Adaíl"…

Arrumação da casa…

O lanche matreco…

 

Durante mais algum tempo fui passeando pelos jardins do meu hotel. Os últimos raios de sol davam um ar melancólico à paisagem e foi já dentro do saco-cama que jantei mais uma dose de massa com um molho levemente parecido a bolonhesa, mas que empurrado com uma gigante caneca de chá e dois mini-chocolates como sobremesa cumpriu a tarefa de apaziguar o espírito e retemperar forças porque o dia estava quase no fim.

Amanha haverá mais lembro-me de pensar ainda antes de acabar de escrever as notas sobre a etapa…

 

Pelas 18h30, os tons davam à paisagem um tom melancólico…

A previligiar o descanso e a leitura…

 

Estranhamente não me sentia de todo cansado. Após 100km de jornada, cifra que por norma me deixa sempre empenado no final, estava com as pernas de quem fez a volta pelo quintal.

“Fresco!” cheguei mesmo a arriscar no telefonema para casa.

 

No entanto, assim que deitei a cabeça na improvisada almofada, adormeci relaxado e profundamente. Merecia-o também!

 

 

Resumo da etapa:

Hora saída: 06H50

Distancia total: 102km

Tempo total: 08H52

Tempo movimento: 06H45

Velocidade media: 15.1km/h

Velocidade máxima: 50.5km/h

Acumulado de subidas: 1360m

Acumulado de descidas: 1262m

 

Continua…

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“Travessia do Sul” – Fotos e Video

17 de maio de 2009 1 comentário
Aqui estou eu de novo feliz da vida!!!
 
Depois de completar esta minha primeira aventura deste tipo, venho aqui deixar o video que fiz da passeata, assim como o link para a galeria completa de fotos.
 
 O filminho que fui fazendo desta minha aventura por trilhos e caminhos do sul… 
  
 
Seguindo este link podem ver a galeria de fotos: " Travessia do Sul "
 
O relato da aventura está acima e está dividido por etapas.
Mais uma vez, um obrigado aos amigos que e aos votos de boa sorte!
 
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“Travessia do Sul” – Os ultimos preparativos

13 de maio de 2009 2 comentários
 
O meu Raid "Setubal – Sagres" … A menos de 24 horas.
 
 
Inicialmente previsto para ter inicio a dia 21 fui, entre aspas, obrigado a avançar a data desta aventura por uma série de motivos, entre eles o aniversário da Catita ser a 19 e pretender estar presente nesse fim de semana.
 
Como nada havia contra, o dia da partida para este desafio ficou agendado para quinta-feira, dia 14. Amanha portanto!
Durante a semana que passou muitas voltas dei para conseguir ter material e bike prontas para estes quase 300kms de desconhecido e aventuras.
O suporte e alforges que comprei precisavam de uns ajustes e de alguma engenhoca para ficarem a funcionar com alguma certeza de resistirem à dureza de 4 dias de viagem por trilhos de btt e muito pouco asfalto. Carregados até ao topo, certamente a rondar os 8kg de peso, o máximo admitido recomendado pelo fabricante, levam desde a tenda e fogão, o livro e o caderno de bolso, toda a alimentação, e claro, ainda todo o peso que acarretam os sonhos…
 
Material parcialmente arrumado já nos alforges. A caixa vermelha é a "mesa", não é para ir…
Suporte completo já fixado…
 
Aquelas 4 pernas servem para impedir o encostar do alforge à roda traseira. Foi uma engenhoca que arranjei para resolver o problema da capacidade de carga permitida pelos alforges "normais" para bikes de suspensão total. É uma das minhas grandes dúvidas se aguentará ou não, embora deva confessar que fiquei bastante contente com o resultado final. Ficou leve e com alguma resistência. Vamos ver se me safo!
 
A partida de Setúbal está prevista para as 06H15, horário do 1º barco para Tróia onde atraca pelas 06h50, dando-me o tempo mais que necessário para iniciar oficialmente esta minha aventura pelas 07H00.
Será, sem qualquer sombra de dúvidas a maior, mais audaz e mais longa aventura sobre duas rodas que já me propuz realizar.
Seja como for, já não à volta a dar.
A minha travessia do Sul está aí, e não posso fazer já nada para o adiar. Também já não quero esperar mais. Esta ânsia da preparação e da espera é talvez pior que o conhecimento de que irá ser durito, mesmo muito duro.
 
Etapa 1
Troia – Br.Adail > Dist: 104km > Acumulado: 1144m
Etapa 2
Br.Adail – Viradouro > Dist: 67km > Acumulado:966m
Etapa 3
Viradouro – Aljezur > Dist: 55km > Acumulado: 1488m
Etapa 4
Aljezur – Sagres > Dist: 60km > Acumulado: 1168m

 
Este é o registo do desnível altimétrico por etapas.
Pode ser um registo normal para uma voltinha rotineira no quintal. Mas eu vou fazê-lo em total autonomia, a bicicleta com um peso total que deve rondar os 20km, com as incertezas de encontrar ou não bons locais para montar a tenda, ter de preparar as minhas próprias refeições, as hipóteses reais de avaria ou ruptura do material, etc…
Mas não só coisas menos boas. Conto ir passar em zonas com paisagens privilegiadas, segundo relatos de outros aventureiros que se fizeram ao caminho antes de mim que apregoam magnificas vistas, lindos trilhos, zonas ainda remotas perdidas no tempo, aldeias brancas, outras abandonadas…
Por tudo isto e por tudo o resto não podia deixar de me tentar e de seduzir…
 
Espero daqui a 5 dias estar a escrever sobre estas linhas a feliz conclusão desta minha viagem.
Ou então a relatar os porquês do meu fracasso…
Seja como for…
 
Aqui vou eu à aventura!
 
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“Travessia do Sul” – A preparação

20 de abril de 2009 Deixe um comentário
 
O meu Raid "SETUBAL – SAGRES" …  A um mês do dia D.
 
O percurso deste projecto resulta da junção de três tracks distintos. O primeiro, que me levará até Viradouro é da autoria do FPCUB e o restante percurso é coincidente com as duas últimas etapas de uma das maiores provas de travessia a nível mundial. Falo naturalmente da Transportugal, organizada pela Ciclonatur e pelo Sr. António Malvar, prova essa que um dia ainda hei-de ter pernas para fazer…
 
A ideia consiste em fazer esta viagem em 4 dias de pedal, com consequentes dormidas em tenda e na berma da estrada, literalmente.
Saindo dia 21 de Maio conto chegar a Sagres, mais precisamente à praia da Marreta, no dia 24 lá pelo fim da tarde.
 
Etapa 1 : Setúbal – Adail : 104km
Etapa 2 : Adail – Viradouro : 67km
Etapa 3 : Viradouro – Aljezur : 55km
Etapa 4 : Aljezur – Sagres : 60km
 
Distancia Total: 285km
 
 
Este raid será feito em total autonomia, ou seja, de casa às costas.
Todo o meu mundinho rolará junto comigo durante estes 4 dias de total liberdade, à procura de mim e do meu espaço. Um treino fisico e mental para um desafio talvez maior.
Será também um sério teste ao comportamento do suporte e dos alforges que arranjei para fazer a Travessia Pedals de Foc. Não quero grandes/graves problemas quando estiver a 1500km de distância de casa, sozinho na imensidão dos Pirinéus.
Irei andar com muito mais peso agora, por isso se resistir estará apto para enfrentar os 4 dias de btt nos pirineus…
Estarei eu preparado?!
 
É o que conto descobrir daqui a mais ou menos um mês…
 
Para esta grande aventura vou contar com a minha velha amiga Spec! Para quem não conhece, trata-se da minha vermelhinha e endiabrada Specialized.
Bike com que já fui muito feliz durante outras luas e vivi muitos e muitos momentos de alegria genuína!
 
Será definitivamente, um regresso às "minhas origens"…
 
Mais novidades brevemente…
 
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“Tróia – Sagres” – O Dia do Dilúvio

14 de dezembro de 2008 Deixe um comentário

Sagres… uma miragem!

Apesar da minha viagem ter terminado em S.Torpes devido a uma quebra psicológica como nunca tive igual e sem coragem para continuar, resta-me dizer que lá voltarei em 2009 para a desforra…
Tendo começado às 08h00, saíndo da localização actual do cais de embarque em Tróia, desisti em S.Torpes onde cheguei pelas 12h40 depois de dois furos e +/- 80 kilómetros.
Para ajudar o meu ciclómetro nunca funcionou durante todo o caminho, nao me permitindo sequer fazer uma ideia da velocidade média a que circulava na altura, distância percorrida, tempo gasto, etc…
Até o mp3 se calou, rendido à furia de tanta chuva!

Nenhuma palavra que escrevesse iria exemplificar melhor o que foi este
desafio. Por isso, deixo-vos com o rescaldo da 19ª edição do
Tróia-sagres do José Carlos no Forumbtt.net que para mim é elucidativo das condições e da dureza que foi todo o percurso!

"Vivam todos,

Nem sei por onde começar….
Em todos os anos que ando de bicicleta, nunca tinha visto nada assim!

Já apanhei muita chuva, lama, vento, frio…. mas na serra as coisas são um pouco diferentes.
Anda-se sempre um pouco mais abrigado ou não sei o que é, mas como hoje…. 

O meu Troia-Sagres este ano estava previsto desde início ser só "meia-dose" já que tinha combinado levar a carrinha de apoio da Ciclonatur uma pare do percurso, permitindo assim à pessoa que todos os anos tem essa inglória tarefa, a possibilidade de acompanhar o António Malvar.

Ainda não eram 07:30h quando nos dirigíamos para Troia e vimos passar os primeiros aventureiros na Comporta. Só até Troia contámos 160 ! 

Por esta altura ainda não chovia, e deve ter sido a única altura durante todo o dia em que isso aconteceu, até por volta das 08:30h. Depois, enquanto o António e a Berta se equipavam, foi vê-los passar. Grupos de 4, 6, 10, 12…. eram aos molhos!

Fiquei na zona da partida a apontar no telemóvel o nº de participantes de cada grupo até perto da 09:00h e qual foi o meu espanto quando mais tarde somei tudo… deu 486 participantes.
Mal arranco, passa por mim um autocarro do grupo Carris com um atrelado atrás com mais de 20 ciclistas….
Ainda voltei para trás para os contar, mas foram em frente para Troia e eu precisava de seguir, mas com estas informações posso afirmar seguramente que este ano partiram de Troia mais de 500 participantes!

À medida que fui avançando e passando os grupos que tinham saído depois das 8, reparei que as caras do pessoal
já mostravam algum desânimo e a chuva que entretanto tinha começado a cair bem, estava a começar a fazer estragos.

Como tínhamos deixado para mais tarde a decisão de onde se efectuaria a troca de condutores, fui andado passava o meu grupo, parava, tirava umas fotos, avançava novamente e a história repetia-se.

Uma chamada de atenção que todos os anos se repete, é para as pessoas que vão de carro a acompanhar os grupos
não se colocarem imediatamente atrás dos ciclistas.
Assisti a muitos "engarrafamentos" onde estavam alguns condutores que não tinham nada a ver com o passeio e a situações de outros grupos mais rápidos que tinham que pedalar na faixa contrária durante imenso tempo para passar os carros e os ciclistas que iam à frente. Depois o carro de apoio desse segundo grupo, tinha que se enfiar em algum sítio e normalmente era a apertar os outros ciclistas.

Perto de Santo André, apanho novamente os meus "apoiados" e depois de uma breve paragem para tirarem um gel e umas barras do bolso, percebi que as coisas não estavam a correr nada bem e que os pneus smi-slick 1.95 da bicicleta da Berta não tinham sido a melhor opção e o passo demasiado lento que levavam estavam a deixar o António, que já partiu com uma bela "carraspana", completamente gelado.

Decidimos
aí que em S. Torpes trocava-mos de posições, o que era demasiado cedo
para mim que apenas queria fazer uns 80 ou 90 Km’s.
Avancei para o
local da 1ª paragem, em frente à termo-eléctrica, equipei-me e fiquei à
espera deles (o que levou mais de uma hora)
para começar o meu calvário.

Por esta altura a chuva aumentava de intensidade e praticamente todos os que ali chegavam a esta hora (12:30h prox) metiam-se nos carros e davam a volta ao barco (literalmente).

Confesso que já fiz muita maluqueira de sair à chuva, andar na Serra da Estrela no pior fim-de-semana dos últimos 500 anos, ir para o trabalho ás 7 da manhã com -2 graus, etc…. mas pegar na bicicleta em S. Torpes hoje, por volta do meio-dia debaixo de uma autêntica tempestade, deve ter batido todos os records. 

Como muitos de vós, não me importo de estar a andar e começar a chover, mas pegar na bicicleta debaixo de uma tempestade como estava naquele momento….. 

Assim que o A.M. comeu uma sandocha arrancámos, e eu pensei sempre que como estava a arrancar "a frio" ia levar uma coça dele mas se eu estava a arrancar a frio, ele estava a arrancar a … congelado.

Seguimos devagar sempre a aliviar quando o vento soprava de frente para não gastar energias desnecessárias, e até fizemos uma boa média (25 k/h) nos primeiros 20 ou 30 km’s.

Depois vieram as cãimbras e em S. Teotónio o A.M. dava sinais de grande dificuldade.
Estava gelado, doía-lhe o peito quando respirava e não conseguia pedalar.

Ainda se convenceu a ir beber um chá quentinho ao Rogil, mas antes da subida de Odeceixe encostou!

Pela 1ª vez em 19 anos, o Homem que deu início, sozinho, a um "movimento" sem igual no panorama das bicicletas no nosso país, não cumpriu o seu objectivo.

Eu,
ao escrever estas linhas e recordar a expressão na sua cara, fico
triste (e sei que ele também ficou) e lembro-me das suas palavras:


"Quando fiz 40 anos, o que aqui entre nós, não foi assim há tanto tempo, estabeleci para mim próprio um teste anual para contrariar a sensação de velho que minhas filhas já adultas me faziam sentir." A.M..

Apenas posso acrescentar que estou certo que ainda vai realizar muitos mais Troia-Sagres! 

Quanto a mim, segui em direcção ao Rogil apanhando pelo caminho um grupo de velhos amigos, com os quais já tive o prazer
de pedalar por varias vezes, seja em Sintra, nos passeios da Ciclonatur ou até num Troia-Sagres ao qual me "colei" e lá fomos numa amena cavaqueira.

Depois da demasiado longa espera pela tosta-mista do Café do Rogil a questão que se colocava era se seguia com este grupo até Sagres, ou se me metia na carrinha e voltava-mos para trás logo ali.
O problema era que o relógio marcava 15:45h e até Sagres, com aquelas condições íamos demorar seguramente mais
de duas horas, o que significava que passávamos a pertencer à classe
"maluquinhos que acabam o Troia-Sagres completamente de noite"


Convencidos
os outros ocupantes das viaturas a irem até ao final a 20 km’s hora
(nas descidas) para nos iluminarem o caminho e protegerem
dos outros automóveis, quem tinha luzes montou-as, e lá seguimos.

Esta
história que já vai demasiado longa, principalmente porque são 02:30h
da matina, podia acabar já aqui, não fosse a melhor parte vir agora.


Meninos,
vou-vos contar uma coisa…. até à Carrapateira a coisa ainda se papou,
mas fazer aquela subida de 9 km’s, com o pessoal a começar a quebrar,
a chuva era tanta, tanta, tanta…. que por momentos pensei que estava ali ao lado na praia do Amado a dar uma surfada.
O
vento dobrava as árvores de tal forma que estava a ver quando é que um
eucalipto aqueles fininhos me mandava uma vergastada na tromba.

Entretanto fez-se noite cerrada…. os carros que passavam por nós abrandavam e a cara das pessoas lá dentro era de horror!!!

Resumindo…. há muito tempo que não me divertia tanto na minha vida!!

À
memória vieram os dias de menino, que só a bicicleta nos pode trazer de
volta, em que, mesmo sabendo do puxão de orelhas (ou outras coisas)
que
iríamos levar ao chegar a casa, nos enfiávamos dentro das poças de água
e apanhávamos aquelas molhas descomunais com direito a constipação
nos dias seguintes e no meu caso a ser o brigado a ir à escola na mesma que "era para aprender a não andar à chuva".

Foi assim até Sagres com a benesse do vento ter virado e amainado um pouco e de vez em quando dar uma ajudinha.

Tudo isto não se tornou um pesadelo porque felizmente a escolha do equipamento se revelou perfeita para as condições. Casacos, luvas e impermeáveis de boa qualidade foram essenciais.

Um
grande obrigado ao António Malvar por ter tido esta brilhante ideia e
por hoje, me ter proporcionado mais um dia de felicidade,
e aos companheiros dos últimos Km’s.

Para o ano o Troia-Sagres faz 20 anos e irá haver surpresas, se tudo correr bem.
Desculpem a seca, mas só leram porque quiseram… 

Abraços e boas pedaladas, molhadas!

JC"

In forumbtt.net

A unica foto possivel, antes de apanhar o barco para Tróia e quando tudo ainda eram sorrisos!


A foto da praxe seria a placa indicativa de "Vila de Sagres", mas essa terá que esperar…

Fica aqui o filme possivel feito pela malta do BTT-TV: BTT-TV – 19º Tróia – Sagres

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